sábado, 22 de outubro de 2011

Dorme Rita

Um conto inacabado

Ricardo juntou as mãos e tirou dos olhos o olhar remelento, então seus olhos desabarabam, sem brilho, na pia e toda sua coragem desceu ralo abaixo em um glup glup nostalgico. Sem forças forças suficientes para voltar-se ao espelho, retornou para a poltrona onde já estava a a mais de um ano.
A sala escura e os moveis frios o abraçaram como aprenderem a a fazer todo o amanhecer e já não era possivel distingui-lo da mobilha, os mesmos olhos de sempre, posados na mesma foto criaram sua propria vida dentro do cubiculo morto da sala de estar.
A enorme foto de uma mulher com olhos redondos que lembram buricas coloridas espalhando luzes como estrelas na madrugada, um rosto oval cortado por um nariz bonito e uma boca tirada de anuncio de batons exóticos, tudo isso era o rosto de Rita, senhora absoluta daquela sala.
Sobre amesa duas taças de vinho pela metade, ambas ligadas por um tenue fio de teia de asranha, frascos de um comprimidpo para dormir, um revolver e muitas fotosd em preto e branco e em dezenas de outras cores que a escuridão da sala já não revela a lucidez. dentre todos os objetos, no entanto, os unicos que parecem ainda fazer parte da realidade são a velha maquina de escrever e uma garrafa de wisk pela metade e os unicos sinais de que aindam moram alguns sentimenstos são o ranger quase demente da poltrona que gane de quando em quando e as folhas amassadas que foram o chão.
Todas as manhãs, desde a morte de Rita, Ricardo se olha no espelho e seus olhos desabam na pia e descem ralo abaixo. Já pensou inumeras vezes em quebras o espelho para salvar seus olhos, mas de certa forma não quer salva-los. Tem medo de que seus olhos ganhem vida propria como os olhos das fotos espalhadas pelas paredes. Olhos que o espiam o dia todo, a noite inteira, torturando-o com o silencio. Fotos de Rita se espalham pela sala, caras, bocas, nariz e cochas de uma mulher que não morreu totalmente. Olhos que estão pela sala e enfrentam a intensa escuridõa do desejo de Ricardo.
As folhas que estão amassadas no chão são as ultimas gotas de uma sanidade que lentamente vai deixando de pingar. Ricardo é alguem que ainda tenta sorrir pelos cantos dos olhos, mas cada folha amassada sera uma peça que ira faltar no quebra cabeças de seu riso. Seu silencio já é a muito tempo quase musical, tem tons leves de um desespero contido a força de muito pranto. Ricardo, seu silencio, e seu desespero são coisas tão solidas quando aquela poltrona, aquela mesa e todas as paredes que lhe enjaulam o desejo.
Ele estica os olhos e suas retinas então abraçam a maquina de escrever, a engrenagem da memoria falha, mas ele tenta buscar no amago do tempo sua vida e o papel daquela maquina em sua existencia. As imagens confundem-se e rodopiam como passos de um bailarino desesperado sobre o teclado da maquina, seu matraquear se espalha pela penumbra e antes que atinja lhe os ouvidos já são gemidos agonizantes e Ricardo novamente vê parado ao lado da poltrona a sombra sem nome que o visita sempre, as vezes um homem, outras vezes uma mulher, mas ele prefere acreditar que seja o proprio demonio.
“Pensando naquela vadia?” Pergunta-lhe a sombra numa voz que ele não consegue distunguir o timbre do sexo.
Ricardo tem impetos de reagir como sempre faz, gritar, tentar esmurrar a sombra, varrer e busca inutilmente o revolver e por fim no apice do desespero engolir os comprimidos e abraçar sorrindo seu desejo de morte. No entanto, hoje ele não tem forças, seus labios estão secos e sua garaganta de tantos brados a pureza da Rita a beatitude que ele acredita emanar dela. Ele tem os olhos cansados de tanto que chorou e de tanto que já olhou para a amesma foto, mas ele ainda deseja ve-la sobre todos os angulos ao mesmo tempo. Seus musculos já estão exaustos, mas ele ainda corre madrugada a dentro tentando abraçar uma mulher que na verdade está apenas nele e na penumbra a seu redor, penumbra que já faz parte de sua alma, apesar de toda a solidez que tem.
Nesta manhã tudo está como sempre esteve nas outras tantas manhas, mas falta-lhe algo, falta-lhe a força, a disposição, a coragem que escorre pouco apouco a toda manhã de seus olhos e escorre abaixo no ralo da pia. E não importa o que a sombra do demonio lhe diga, ele não ouvira, não vera e não tera mãos para tocar em nada.
Como em todas as manhas desde a morte de Rita, o sol nasce lá fora, mas dentro da casa Ricardo e seus medos não tomam conhecimento de seu calor ou luz, e o sol por sua vez não encontra forças para rasgar a prepotencia das cortinas escuras que abraçam a sala, os quartos e todos os outros aposentos.
Na casa, alem de Ricardo, vivem sua irmã Debora e a amiga Dulce, mas elas tem seu proprio mundo dentro daquele mundo pantanoso da casa, nelas ainda vem-se vestigios de uma sanidade que embora vesga tenta ver a luz que não consegue atravessar as paredes.
Para Ricardo o telefone não toca, as cartas nunca mais vieram e msmo que viessem ele não teria coragem suficiente para rasgar o envelope e o tinir do telefone seria apenas um grito distante ao qual se perde a persepção com um mover de cabeça. O tempo parou e o retrato maior na parede é apenas uma porta na qual Rita está encostada no batente, sem nunca entrar totalmente e sem nunca fugir por inteira.
Enquanto Ricardo está sentado ali como esteve nos ultimos meses mastigando as reminicencias que mastigou nos ultimos tempos, lá fora a manha aborta prematuramente um novo dia. Um dia de finados. O tempo parece estar vestindo uma mascara hedionda roubada de algum personagem mitico de Nelson Rodrigues e talver por isso as pessoas caminhem tristes pelas trilhas e coredores estreitos entre os tumulos no pequeno e frio cemiterio.
Dentro da casa Ricardo se veste como se vestiu na noite do velorio de Rita, todo de preto, e agora quase um ano depois o pretume de seu traje parece se confundir com o pavor que sente do mundo lá fora e com apenumbra que o faz uma estatua de pedra sentado em um tono de mesma solidez. Do mesmo preto que ele se veste estão vestidas tambem Debora e Dulce, que caminham lentas até a sepultura esquecida de Rita, enquanto Ricardo se desdobra para içar-se do sofa e caminhar até a maquina de escrever, as duas dobram os joelhos para rezarem e depositarem flores ao pé do tumulo. E como que se ligados por um relampejo de cumplicidade ao redor da mesma saudade que sentem de Rita, os tres balbuciam a mesma palavra ao mesmo tempo, as duas com os labios semi abertos e ele com os dedos lentos sobre o teclado da maquina.
Debora e Dulce, de certo modo, possuem almas gemeas, como se seus corações fossem apenas um, compartilham de tantas coisas que as vezes se confundem dizenso ao mesmo tempo as mesmas palavars. Elas tambem estão vestidas da mesma maneira desde a noite do velorio e não sabem quanto tempo realmente se passou, na casa onde moram com Ricardo não existem calendarios e nem relogios e au unica coisa que impera o tempo todo é a noite, que já parece estar querendo roubar delas a razão como já fez com Ricardo.
O que elas sentem não conseguem explicar, mas unidas compreendem-se perfeitamente, ambas estão palidas como estatuas de cera e suas mãos postas como as patas de um louva deus parecem desmentir um pequeno vestigio de furia que ainda viceja no fundo de seus olhares.
É o primeiro dia de finados depois da morte de Rita, elas não se lembarm quando foi que ela entrou em suas vidas, mas se lembarm dela perfeitamente assim como as mães se lembram dos sorrisos infantis de suas crias mesmo quando esses já são adultos ingratos, e o sorriso dela era como uma metafora esculpida em um poema abstrato, quase inpossivel a compreensão, mas ele está marcado a ferro e fogo dentro de suas lembranças.
Existem outras imagens alem do sorriso, coisas como um andar genuino e cheio de um gingado somente dela, olhos cor de mel e outros detalhhes que insistem em se perderem nos borrõs das cores frias do tempo, mas Rita apesar de tudo parece olaha-las intacta da sepultura. Seus joelhos doem, a falta de habito de se porem de joelhos as castiga, mas as palavras murmuradas por bocas coencidentes parecem estrangular um gemido que deveria ser de dor.
Ricardo tem os dedos sobre o teclado da maquina e escreve como quem já tem o corpo moido pela travessia de um deserto por dias e dias, sem agua ou sombra, sua agonoa é visivel mesmo abraçada pela solidez da penumbra e poderia até mesmo ser manipulada se a vida de repente se tornasse um palco de marionetes.
Ele mal se lembra de si mesmo, a não ser apenas que lhe falta uma parte, que lhe foi tirada parte sem a qual seu inteiro se anula. Há momentos em que frragmentos de seu passado lhe chovem a frente dos olhos, mas logo vem a calmaria da insanidade. Ele não tem certeza de como ela se foi, sabe apenas que um dia ela estava e nou outro já não mais estava com ele. Agora vê o demonio deslizar pela sala, mas não é somente ele que o vem visitar, nos ultimos dias ele tem aimpreção de ver Rita deslizando nua pela penumbra e sempre com o dedo indicador colado ao labio em pedido de silencio. O que ele ainda lhe poderia dizer? Compos tantos versos para ela. Cantou-lhe tanto amor, sua obra roubou-lhe todas as palavras e as entrgou de bandeija para Rita. E com sua morte todas as palavras o abandonaram, indo para longe, indo para alem do horizonte, para alem de seu tato, para alem de sua capacidade de amar e de escrever versos para este amor.
Um poema para ele era como o ar, a rima como uma quada d’agua, e seu verso como uma ilha cercada de ondas mansas por todos os lados e de repente tudo se transformou em uma Atlantida sem antiteses e nem metaforas, submergindo emum oceano de dor. Ricardo não se reconhece no espelho, as maças do rosto salientes, os olhos roubados, olhos de quem perde os olhos todas as manhas na pia do banheiro, e uma baba de quase trezentos dias.
Em relampejo desesperado ele, as vezes, se lança sobre a maquina e poem -se a surrar-lhe o teclado, na esperança de produzir um unico verso, mas nada lhe brota da alma, sua exencianão lhe vaza dos poros, não existem mais influencias capazes de o inspirar. Pelas estantes mergulham na solidão Verlaine, Rimbaud e tantos outros que ele tentou beber os versos na esperança de ejacular alguma coisa menos amarga que a existencia.
A Rita quando viva substitui todos os poetas mortos, cada canto de sua alma foi preenchido por uma nova gota de paz, seu aceno de chegada ou de adeus transformou-se em um abraço cheio de verdade e fogo e seu olhar tornou-se intacto como o tempo, nenhum cataclisma lhe seria capaz de roubar a calma, mas de repente tudo se foi como em uma tempesta de de verão.Rita morreu..

Labirintos de Rita.

Há quem me pergunte de onde vem essa fixação por Rita. Uma mulher sem rosto. Mas que coxas ela tem, meu Deus. Pelo menos dentro da minha imaginação ela tem os olhos mais doces do mundo, e o melhor de todos os beijos. Amo Rita desde sempre. Desde antes. Ela foi prefácio de si mesma. De óculos, cabelos loiros ou sem óculos e pele negra. Rita é tão contraditória dentro de mim.

Eu a conheci, a vi pela primeira vez, em um baile de máscaras. E até hoje eu desconheço seu rosto. Tenho ficção por seu nome. A vejo nua, pernas grossas, lábios tenros, sorriso maroto. Tenho sonhado com ela nestas últimas noites. No sonho Rita está sempre correndo. Hora em minha direção, hora para longe de mim. Para onde ela corre? Para que tantos passos?

Uma vez eu a encontrei na biblioteca. O rosto escondido por detrás do livro. Mais uma vez fiquei sem conhecer seu rosto. Mais uma vez vi apenas suas pernas. Longas. Cruzadas sob a mesa. Rita tem sido apenas pernas. Pernas sob a mesa. Pernas a correr para lá e para cá.

Como será, de fato, o sorriso de Rita? Maroto, como em minha imaginação? Escondido por um parelho ortodôntico? Tenho imaginado varias situações. Ela sempre está com o rosto escondido. Como amar uma mulher sem rosto? Será o bastante amar somente suas pernas? Acho que não, mas por Rita vale a pena tentar.

Ela lê, cabeça baixa. Os cabelos longos caem-lhe no rosto. Está imóvel. Somente seus lábios se movem. Vejo suas pernas cruzadas sob a mesa.

Uma vez, pensando em Rita, escrevi um soneto. Mas era um soneto sem rosto. Somente pernas. 14 pernas. Uma perna para cada verso. Um verso para cada vez que deixei de ver seu rosto. Ainda me lembro do soneto.

Rita, linda mulher sem rosto,
Vejo-te cálida, feroz e crua,
Desejo-te plácida e nua.
Rita, não imagina como gosto

De imaginar-te a face,
Por todas estas noites vazias,
E por tantos e tantos dias
Anseio-te ver sem o disfarce

Que em mim te cobre a tez.
Estou cansado de ver-te apenas
A beleza ondulante das pernas

Que majestosa cruzas sob a mesa,
Queria Rita ter a certeza
De teu rosto, ao menos uma vez



Rita mesmo no soneto é uma mulher sem rosto. Apenas pernas, busto, quadril, cabelos caindo sobre as faces. A máscara eterna. O eterno baile de máscaras. Por quê Rita faz isso? O que ela quer? O que eu quero dela? Quero ver seu rosto, nada mais.

Em um dos meus últimos delírios de amor me vejo próximo de Rita. Aproximo-me devagar. Pé ante pé. Sussurro no seu ouvido.

- Me mostre seu rosto, Rita.

- Não posso.

- Por quê fazes isso comigo, Rita?

- Não tenho rosto, apenas pernas.

O cheiro dela é inexplicavelmente brando. Anestesia a aspereza de suas palavras. Ela é apenas pernas. Pernas para fugirem de mim. Ela no transito, agora eu sigo, pára no sinal vermelho. Olha-se no espelho, passa batom, está, está de costas. O sinal abre. Rita some. Mistura-se a outras pessoas. Desce do carro e mistura suas pernas a tantas outras pernas. Rita some na multidão. Somente pernas e nenhum rosto.

Agora ela está escondida por detrás de um livro. Vejo seus ombros e seus seios. Céus, que descoberta. Rita também tem seios! Seios que sobem e descem. Seios e pernas, onde estará o rosto? Noutra ilusão Rita está lendo quando me aproximo.

- Que livro está lendo, Rita?

- A mulher sem rosto.- Ela diz, sem me mostrar o rosto. Mostra-me apenas os seios e as pernas.

Aos poucos vou descobrindo Rita. Assim como quem monta um quebra cabeças. Primeiro as pernas. Depois os seios e os ombros. Rita é como um jogo de montar, me parece. Descubro-lhe os braços, a barriga, espio por debaixo da mesa e tento lhe descobrir detalhes nas coxas. Ela cruza e descruza as pernas. Distraio-me um pouco e Rita já se foi. Levou seu rosto para longe de mim. Mais uma descoberta, a ausência de Rita.

Em um de meus últimos sonhos nós jogamos pôquer. Rita tem as cartas à frente do rosto. Escondido mais uma vez. Quando vai se livrar da máscara de cartas, jogando-as na mesa, eu acordo sem tempo de ver-lhe o rosto. Frustrado me olho no espelho. E estranhamente não vejo meu próprio rosto. Tudo é apenas uma massa disforme. Feito a batata de uma perna magra. Onde está meu rosto? Meus olhos? Minha boca? Meu nariz? Não tenho olhos, mas vejo mesmo assim. Não tenho ouvidos, ou boca,. Ou nariz. Quero gritar de horror, mas onde está a boca? Sinto duas mãos a massagearem meu rosto. Viro-me e lá está Rita, também sem rosto.

Acordo desesperado. Percebo que tudo era um sonho.

Tenho imaginado Rita em varias situações. Outro dia tive a impressão, na praia, de ver a escondida através te um enorme guarda sol. Reconheceria aquelas as pernas em qualquer lugar. Nem mesmo o sol ofuscando tudo é capaz de esconder suas pernas à sanha de meu olhar apaixonado. No instante em que me levanto, disposto a caminhar até Rita, o inevitável acontece. Um daqueles vendedores ambulantes, que insistem em encher as areias das praias de mais confusão e produtos falsificados, cruza minha frente com seu varal cheio de cangas, óculos, toalhas. E quando se vai Rita também já se foi, nem mesmo guarda sol ou pernas, nada restou, apenas a marca arredondada do bumbum na areia. Eis aqui mais uma mágica descoberta; Rita também tem bunda. E pelo fóssil esculpido na areia, deve ser uma bunda das mais belas. Redonda, feito bunda de chacrete, bunda de dançarina de programa de auditório do canal 13.

A fome de Rita aumenta dentro de mim, fome de seu rosto, fome do resto de seu corpo. Rita se foi e sobrou apenas sol a corroer minha pele já avermelhada.

Noutras ocasiões imagino-a feito uma atleta de esgrima, luta com aquela máscara no rosto, golpes precisos, duela comigo, numa luta de vida ou de morte. O cenário é pitoresco e romântico ao mesmo tempo, flores por todos os cantos, os golpes de Rita são precisos, mas ela toma cuidado para não machucar as flores, seu florete corta o ar, venta perto de meus ouvidos, ela não luta, percebo, ela dança uma coreografia mágica, lúcida, espontânea, não há pragmatismo em seus movimentos, sim uma dose de batet d`acion, movimentos perfeitos empunhando a esgrima que silva em minha direção.

Sonho com Rita mais uma vez, correndo novamente. Dessa vez ela é uma atleta. Maratonista, não posso ver seu rosto, ela está muitos metros na minha frente, atravessa a linha de chegada e é abraçada pela assistência e levada, some. Deixa-me sozinho e sem o calor do seu rosto, que deve estar afogueado pelo esforço da corrida.

Noutra noite após um desses miraculosos sonhos me vi de novo com a caneta em punho a fazer um soneto para ela.

Rita de mil rostos desconhecidos
De mil momentos desperdiçados
Por mim na eterna, e adiada, ânsia,
De ver-te o rosto. Mas a distância

Que mantém de mim é tão cruel
Que agora, prostrado sobre o papel,
Tento enxergar a além da máscara
Em que tua face reclusa se ampara,

Mas nada vejo além do imenso
Vazio que me circunda a vista
Ao esconderes-se sem compaixão,

E então eu me tranco na solidão
De tua ausência e, louco, penso
Que é apenas uma sombra, Rita.

Leio o soneto e Rita se materializa na frente dos meus olhos. Agora estamos em uma sala que me parece se tratar de uma sala de psicólogo. Estou deitado no divã e sinto o cheiro de Rita se espalhando por tudo, desde os quadros na parede, as almofadas, nos objetos de decoração. Ouço sua voz.

- O que está havendo com você, Arnold?- Ela pergunta.

Meu nome não é Arnold, mas isso é apenas um detalhe. Rita não tem obrigação de saber meu nome, talvez nem mesmo conheça o meu rosto.

- Estou ficando maluco, doutora Rita.- Respondo a ela.

- Por que acha isso, Alfredo?- Ela pergunta.

Meu nome também não é Alfredo, mas isso é apenas mais um outro detalhe sem a menor importância perante o fato que realmente importa. Tenho vontade de dizer que o motivo é ela, a ausência de seu rosto, mas me calo e ela simplesmente desaparece como que em passe de mágica. É como se simplesmente saísse voando pela janela aberta.

De madrugada em meu apartamento, levanto com a impressão de ouvir passos pela sala, pelos corredores, a princípio fico meio assustado. Pode ser ladrão. Mas como? Eu moro décimo oitavo andar, só se o ladrão entrou pela janela, a menos que seja o super homem ou o homem aranha, eu devo estar enganado. Levando-me ainda meio sonado, acendo as luzes, a claridade machuca os olhos. Na cozinha me deparo com o espetáculo inusitado. A geladeira está aberta. Rita está mexendo, tem a cabeça dentro da geladeira, apenas o resto do corpo aparece na penumbra causada pela pouca luz que vaza da geladeira aberta. O que ela busca de madrugada na minha geladeira? Eu a chamo pelo nome:

- Rita?

Quando ela tira a cabeça de dentro da geladeira vejo uma enorme pedra de gelo envolvendo seu rosto. Um soverte enorme, sorvete de Rita. Caminho em sua direção e ponho-me a lamber o sorvete, na esperança de que ao terminar possa me deparar com o seu rosto.

As situações em que imagino Rita tem se tornado cada vez mais inusitadas, como essa do sorvete. Mas nem tudo são espinhos nessas alucinações. Tem o cheiro dela, que é sempre o mesmo, adocicado e suave.

Nesse último mês sempre que me levanto com a impressão de que Rita está por perto, escrevo um soneto para ela.por exemplo, um soneto para os ombros, um soneto para os seios, um soneto para o busto, sempre quatorze versos, mas não fui capaz ainda de escrever um soneto para seu rosto.

A pilha de sonetos de avoluma, dúzias e mais dúzias, já dariam um livro. Se eu fosse poeta publicaria um livro de sonetos, tenho imaginado os títulos possíveis; A procura do rosto de Rita. Onde está o rosto de Rita? Sonetos ao rosto ausente de Rita. A musa sem rosto. Invisível Rita. Títulos não me faltam, e sonetos também não. Mas não sou poeta, sou apenas funcionário publico. Tenho trabalho a fazer, a papelada se empilha sobre minha mesa, a dias que não faço nada a não ser suspirar por Rita, desejar seu rosto.

Rita entra na recepção, caminha em minha direção, abana um leque na frente do rosto, parece estar com muito calor, de fato os dias tem sido de fato quentes. Começo a suar em bicas à medida que Rita caminha em minha direção. O telefone toca na minha mesa, me volto para atender.

- Alô.

É engano, me volto para ver Rita. Ela não está mais onde estava, não caminha mais em minha direção. Não caminha mais em direção alguma, desapareceu, escafedeu-se. Tomou doril.

Meu chefe está esbravejando alguma coisa. Está furioso. Diz que tenho me tornado relapso, que talvez eu esteja estressado. Sugere-me ir para casa, descansar alguns dias. Digo que não é necessário. Mas ele diz que está decidido e pronto.

Pego meu terno, jogo sobre os ombros. Saio para a rua. Está chovendo. Vejo Rita entrando em um táxi. O táxi arranca. Joga água nas pessoas na calçada. Alguns gritam palavrões em direção ao táxi. Um rapaz mostra o dedo anular. Filho da puta. Grita vibrando o dedo no ar.

Entro no meu carro. Ligo o rádio e saio para a chuva. O rádio toca a introdução de uma música que eu conheço bem.

A Rita levou meu sorriso
no sorriso dela meu assunto
Levou junto com ela o que me é de direito
Arrancou-me do peito e tem mais

A Rita, de Chico Buarque. Merda de FM. Desligo o radio e fico ouvindo o som da chuva batendo na lataria do carro. Acendo um cigarro. A fumaça anestesia minhas sensações. Na rua o trânsito está infernal às quatro horas da tarde, o caos da metrópole é um anestésico pra alma, e a minha está carente de alívios. Fico vendo as pessoas passarem, imagino onde deve estar a Rita a uma horas, onde estará seu rosto em meio a tudo isso. Perguntas. A chuva cai. A lataria retumba. O caos se instala ao redor do carro. O frenesi do engarrafamento entope minhas artérias de uma nostalgia que beira a misantropia. Buzinas, a lentidão, pessoas a pé ultrapassam meu carro. Uma dessas pessoas pode muito bem ser Rita, não posso dizer que sim e que não, não consigo ver rostos, nem pernas, o caos da chuva aumenta cada vez mais. Penso em Rita.

Penso nas palavras de meu chefe, que estresse que nada. Estou muito bem. Não tenho nada do que ele imagina, no mínimo acha que estou enrolando no trabalho, os papeis se amontoam sobre minha mesa, petições, requerimentos, alvarás, documentação inútil, pessoas querem coisas, solicitam, exigem, testam a paciência do funcionário publico, um saco. E ainda meu chefe vem com aquela conversa mole de estresses. Fique uma semana em casa, descanse. Descansar vai ser bom. Procurar Rita, tentar enxergar seu rosto no meio da multidão, descobrir suas pernas, seus seios, seu busto, seus pés, refletir sobre os sonetos, quem sabe escrever mais alguns. Um livro quem sabe. Drummond não era funcionário publico? Então, pois bem. Por que cargas d`água eu não poderia também publicar um livro? Mas não agora, agora preciso descansar, diz meu patrão, estressado, foi isso que ele disse. Que bobagem, chefes não sabem de nada. Ninguém naquela repartição sabe de nada, bando de ignorantes, isso sim.

Dez minutos no trânsito, consigo andar uns trezentos metros e sou forçado a parar novamente. A chuva aumenta. A lataria do meu carro parece reproduzir uma sinfonia de metais. Acendo outro cigarro. Ando fumando muito. Através da chuva enxergo um outdoor enorme. Propaganda de meia calça. Reconheço de imediato aquelas pernas. São as pernas de Rita, não há dúvidas.

O que as pernas de Rita estão fazendo naquele outdoor? A chuva vai ficando cada vez mais forte e a cortina de água se fecha, não é mais possível ver coisa alguma à frente do nariz, não existem mas pedestres nas calçadas, os bueiros começam a vazar, vomitar de ressaca, o limpador do meu pára-brisa trabalha feito um louco, o trânsito vai andando aos poucos. Uma hora e meia depois eu estou em casa.

Sete horas da noite. Desço para a rua. Ainda chove. Uma chuva fraca, nem sombra do caos da tarde. As ruas estão tranqüilas. As luzes opacas vazam de janelas abertas, calor, apesar da água que se precipita. Eu suo. Ninguém se atreve a sair a rua. As novelas do canal 13 anestesiam as pessoas, manipulam, trancam-nas dentro de cubículos gentilmente batizados de lares. Onde estará Rita?

Caminho para o bar. Na esquina já enxergo as luzes acesas. Vejo uma mulher saindo apressada. Capa de chuva com toca cobrindo o rosto. Conheço aquele andar. É Rita. Ela dobra a esquina. Corro em sua direção, mas ela já sumiu no fim da rua. Volto para o bar.

- Quem sabe para onde aquela mulher foi?- Pergunto para o primeiro que encontro no bar.

- Que mulher?

- A mulher que acabou de sair daqui.

- Estou aqui a horas e não vi mulher alguma. Você deve estar enganado.

- Tenho certeza de que vi Rita saindo daqui.

- Não conheço Rita nenhuma.

- Você está mentido.- Grito na cara do sujeito.

Ele se levanta enfurecido.

- Está me chamando de mentiroso, seu maluco.

- Mentiroso. Por que está me escondendo o rosto de Rita?

O homem enfurecido me dá um soco no nariz, caio no chão meio tonto, ele me dá alguns chutes nas costelas, sinto uma dor imensa, o homem continua a me chutar, me xinga de maluco e muitos outros palavrões que não consigo entender. De repente a dor pára. Não sinto nada além de uma modorra apática, tudo a meu redor roda. Sinto o gosto de sangue. Tudo fica escuro. Desmaio.

Quando acordo a chuva está mais forte, não há ninguém por perto, o bar está fechado, a rua está deserta. Alguém me chacoalha pelos ombros.

- Ei, moço, acorde!

Conheço essa voz. É a voz de Rita. Não consigo vê-la, meus olhos estão inchados pelos socos do homem, tudo é uma nuvem azul opaca de luz e nada mais.

Não sou Rita. A moça diz.

- Claro que é você Rita. Conheço sua voz.

- Você está enganado, moço.

- Nunca me enganaria com essa voz.

- Está delirando, deve ser a febre, vou te levar para um hospital.

- Não precisa Rita.

- Já disse que não sou Rita. Você está ardendo em febre.

Rita me levanta e me leva para seu carro. Não sabia que Rita tinha carro. Não sei muita coisa sobre ela, mas haverá oportunidades para aprender, descobrir, compartilhar e construir. Sento-me no banco do carona e sinto a cabeça pesada. As luzes dos postes piscam no escuro dos meus olhos embaçados. Desmaio mais uma vez.

Acordo em um leito de hospital. Os olhos já estão desinchados. Uma enfermeira está ao meu lado mexendo na mangueira do soro.

- Onde está Rita?- Pergunto a ela.

- Não há Rita nenhuma por aqui. Descanse, ainda está com muita febre.

Ouço os aparelhos hospitalares, sons monótonos e apáticos, uma ilusão de que a morte está sendo adiada ainda que por apenas alguns minutos. A enfermeira vai e vem, anda para lá e para cá dentro do quarto. Por momentos imagino que seja Rita, e que o rosto fino e os lábios cobertos de um batom esquálido da enfermeira sejam os de Rita, mas as pernas não são as mesmas, os seios não sobem e descem, em seu respirar compassado, frenéticos como os de Rita, que são austeros nos mais sutis dos movimentos. Não, Rita não está aqui, deve estar lá fora.

Olho pela janela, o sol está alto, não chove mais. Sinto-me melhor, apesar de meio tonto. Digo isso a enfermeira, ela diz que deve ser por causa do soro e pelo fato de eu ter ficado deitado durante muito tempo. Uma dor nas costas, ela diz que minhas costelas não foram fraturadas apesar das pancadas. Fico ainda no hospital, durmo e acordo em um ciclo confuso de sonhos picotados, feito uma tela psicodélica, fragmentos de Rita em todos eles, busto, seios, pernas, pés, coxas, joanetes, mas nunca o rosto. O barulhinho persistente do ponteiro dos segundos parece aumentar a apatia no quarto, aumentar a ausência de Rita e de seu rosto.

Quando saio do hospital ainda sinto as costelas doendo, o nariz está quebrado e dói muito, a respiração está difícil, está frio na rua. Caminho devagar vejo as pessoas e nenhuma delas é Rita. Vou até o outdoor de alguns dias atrás, na esperança de rever suas pernas, mas já trocaram a foto, há agora propaganda de cuecas. O melhor é ir para casa e descansar um pouco.

Em casa; nostalgia, vontade de fazer um soneto, pego uma folha de papel e procuro a inspiração, que parece ter fugido junto com o rosto de Rita.

Rita, tenho amargado uma estranha
Saudade da presença de teu rosto
E essa saudade é enorme, tamanha,
Que já sinto a morte. Um desgosto

Em cada gesto, em cada gole, cada trago,
Morre em mim a vontade de ser
E já me esqueço, me abandono, me largo
A mercê de um pálido entardecer

Onde o sol se põe já sem vontade
De retornar no brilho e dar a aurora,
A luz suficiente para iluminar-te

A face. Tenho, Rita, ainda agora,
Uma incerteza, vindo te toda parte
A aumentar a já enorme saudade…

Sim, sinto saudade do rosto de Rita, sem nunca o ter visto. A saudade me atormenta nessa noite, mas do que em qualquer outro. Sinto-me ainda mais nostálgico. As costelas doem. Releio os sonetos, falam sobre todas as partes dela, desde os dedos do pé, até os fios dos cabelos. Ausência de seu rosto. Ausência de sua pessoa. Ausência de Rita.

A chuva volta a cair sobre a cidade. Pela janela vejo as luzes a iluminarem o vazio construído por tantas almas misturadas a soma de suas próprias incerteza. Sou mais um, e minhas incertezas se somam as demais. Visto a capa de chuva. Saio para a rua. Frio, a chuva ainda não está forte. Acendo um cigarro. Tragar dói às costas. Ando devagar. Entro no primeiro bar.

- Uma vodca, por favor.

Bebo devagar. O bar está quase vazio. Poucos homens, barbudos, suados, falam palavrões, tem os olhos pequenos pela embriagues, aqui dentro tenho a impressão de que o tempo passa ainda mais devagar, isso aumenta ainda mais a ausência de Rita. Mais uma vodca, outra, três, quatro cinco. A cabeça gira. A chuva aumenta. Um dilúvio, uma tempestade. Saio para a intempérie. Meus passos agora estão vacilantes por causa da vodca.

Vejo na esquina uma moça, pernas longas, pernas de Rita, maquilagem carregada, batom vermelho sangue de boi, cabelo cortado à chanel. É Rita. Caminho até ela.

- Olá Rita.

- Oi meu bem, como está?

- Estou a sua procura.

- Que bom que me achou, querido.

- Vamos para casa amor?

- Claro.

Ela me dá a mão e subimos a rua. No apartamento tenho dificuldades para abrir a porta, Rita me ajuda. Sirvo uísque para ela, bebemos, fazemos um brinde a nosso reencontro. Estou muito feliz. Ela sorri, finalmente vejo seu rosto, e é muito bonito apesar de tanta maquilagem.

- Você é linda Rita. - Digo a ela.

- Obrigado, meu bem, você é muito gentil.

Beijo a boca de Rita. Sua boca tem gosto de uísque com cigarro, ou será a minha? Beijo os seios de Rita e o resto de seu corpo. Faço amor com Rita. Durante a noite não consigo tirar os olhos do rosto de Rita, quero descobrir cada detalhe, para nunca mais sofre com sua ausência. Durmo abraçado a Rita.

Acordo com o sol entrando pela janela e batendo em cheio nos meu rosto, as costas ainda doem, o nariz lateja, o corpo todo está dolorido. Onde estará Rita. O quarto está todo bagunçado. Parece que passou um tornado por aqui, penso, ainda confuso e com sono.

Com o passar dos minutos percebo a ausência de muitos dos meus pertences, relógio, carteira, cartões de credito. A mulher não era Rita, era uma ladra qualquer. Uma prostituta, que bêbado, achei ser Rita. Mas Rita não me roubaria. A cabeça dói. Fico andando pela casa, e noto muitas ausências, até mesmo uma tela que havia na sala ladra levou. Meio dia. Desço para a rua. Como um restaurante. Comida a quilo. Estou sem fome. A cabeça ainda gira.

Volto para casa caio na cama. Apago.

Tenho um novo sonho com Rita. O cenário é um daqueles filmes de bang-bang. A porta do sallon balança para lá e para cá, ao sabor do vento, que sopra vindo do leste, poeira, rua de terra batida. Mulheres me acenam do alto de uma estalagem. Caminho para dentro do Sallon. Muitas mesas, homens de botas, esporas, revolveres nas cinturas, chapéus de vaqueiro, ao piano um homem de colete preto toca uma bachiana qualquer. No meu peito uma estrela de xerife, caminho pisando duro sobre minhas botas de couro cru, passo as mãos no bigode, tusso alto para mostrar a todos minha presença austera e provavelmente temida, minha postura de xerife de velho oeste. Nos fundos do sallon, a direita do piano há um pequeno palco, onde dançam seis dançarinas com vestidos compridos. Uma delas me chama a atenção por estar com o rosto coberto por uma máscara. Dirijo-me ao cara por detrás do balcão, o único sem chapéu.

- Por quê aquela dançarina está usando máscara? Pergunto.

- Por quê ela é Rita, a mulher sem rosto.

Acordo. Suado e com a cabeça ainda latejando. Durmo de novo. O sonho continua.

Aos poucos o sallon está cheio de cawboys, alguns mal encarados. Começa uma briga em um dos cantos perto do palco, tiros, cadeiradas, garrafadas, uma balburdia infernal. No meio da confusão um sujeito com pinta de vilão de faroeste salta sobre o palco e agarra Rita. Joga ela sobre os ombros e salta a janela mais próxima. Saio correndo em meio ao tiroteio, balas zunem aos meus ouvidos, salto a janela atrás do sujeito.

Ele me espera já com armas em punho.

- Vamos duelar pela donzela sem rosto. - Diz o sujeito.

- Escolha suas armas. - Digo.

Damos as costas um ao outro contamos até dez e nos viramos já atirando. A bela do sujeito passa rente ao minha orelha. Ele cai. Acertei bem no peito dele.

Rita está encolhida atrás de um barril velho. Caminho até ela. Ela se levanta.

- Obrigado xerife. - Ela diz. - O senhor merece um beijo.

Ela vai tirar a máscara para me dar um beijo.

Trimmmmmmmmmm… o telefone toca. Engano mais uma vez.

Mais tarde. Muito mais tarde, não sei quanto tempo fico nesse acorda e dorme, dorme e acorda. Já é noite mais uma vez. A vida é isso. Dias e noites. Ninguém da repartição me ligou para saber noticias. Ninguém quer saber de ninguém, estou sozinho no mundo. Estamos todos sozinhos.

Reúno os sonetos. Digito todos. Com cuidado para que nenhum erro passe despercebido. O windows não concorda com algumas de minhas expressões, coloca seu tracinho verde sobre as frases. Computador idiota, não entende nada de poesia. Vou escrevendo os sonetos para Rita. Espero que ela goste. Espero que ela goste de poesia. Espero que goste de mim. Espero que me mostre seu rosto, para que finalmente eu possa fazer um soneto para seu rosto. Onde poderei encontrar Rita? Se sempre me engano, nunca sei quem é ela, confundo pernas, bustos, me confundo. Talvez Rita venha a meu encontro. Talvez Rita esteja na internet. Em alguma sala de bate papo, talvez tenha Orkut, tão em moda, todo mundo tem, talvez em seu profile tenha uma foto de rosto então eu a contemplarei por inteira ao menos uma vez. Entro na internet. Orkut, digito Rita. Aparecem centenas de rostos, mas sinto que nenhum deles é a Rita que procuro. Minha Rita. Rita a mulher sem rosto. Somente pernas. Bustos. Seios que sobem e descem enquanto ela respira. Não, Rita não está no orkut, não está no Beltrano, não está no Gazzag, nem em outro site de relacionamento. Não está na internet. Não está em canto algum. Está apenas dentro da minha cabeça. Sem rosto.

Coloco os sonetos dentro de uma pasta de couro. Saio para a rua. Nessa noite eu encontrarei Rita. Não passa dessa noite. Mas por onde começar. Onde a vi pela primeira vez? No baile de máscaras. Depois na biblioteca. Mas como sei que era ela na biblioteca se não vi seu rosto em nenhuma das duas ocasiões. Extinto. Aquela época ainda estava lúcido o suficiente para não confundi-la, agora que estou perturbado a confundindo com qualquer uma. Sim, vou a biblioteca.

Paro o carro enfrente ao prédio da biblioteca. Tudo fechado. Apenas um guarda quase que na esquina. Desço do carro e vou até ele. Pergunto sobre os funcionários da biblioteca. Se ele conhece algum deles. Diz que sim. Fala-me o endereço. Decoro e volto para o carro. A noite parece que vai ser longa. Volta a chover. Raios. Trovões. Chuva e mais chuva. Os postes com suas lâmpadas amarelas vão clareando meu caminho através das ruas da cidade, iluminado os episódios de minha caçada por uma mulher sem rosto. Tenho a certeza de que nessa noite ainda encontrarei Rita. Certeza de que ainda essa noite contemplarei seu rosto. E enfim poderei fazer o último soneto e então descansar em paz.

Vontade de fumar. Acabou o cigarro. Paro assim que vejo um bar aberto.

- Um maço de cigarros.

- Só tenho Rithz. Pode ser?

- Rita?

- Eu disse Rithz e não Rita.

- Ah sim , pode ser.

A chuva aumenta. Chove torrencialmente. A casa da bibliotecária fica em um outro bairro, afastado daqui. O trânsito quase não existe. Poucos carros. Faróis acesos. Vermelhos. Amarelos. Sinais fechados para carros que não existem. Vermelho. Espero abrir. Deserto. Chuva. Luzes opacas. Ossos úmidos. Pigarreio. Ligo o rádio. Tusso. Chiados de uma FM qualquer. Dirijo devagar. A chuva lava as ruas com violência. A truculência da chuva assusta os pedestres. Muito tarde. Tusso, abro o vidro. Acendo um Rithz. Nunca fumei desse cigarro. O cigarro é longo, uma dose maior de morte prematura. Tomo câncer de pulmão em goles longos.

Rita está em alguma parte dessa cidade enorme. Em uma casa qualquer em qualquer uma das milhares de centenas de ruas dessa selva de concreto. Preciso encontra-la, ainda esta noite. Talvez ela já esteja dormindo. Sonhando sonhos coloridos e brandos. Eu a encontrarei, nem que leve a madrugada toda.

Alguns bares lotados. Boates. Danceterias. Talvez Rita esteja em alguma delas. A bibliotecária deve saber. O motor ronca como se estivesse com sono por debaixo da lataria sovada pela chuva. As ruas vão ficando estreitas à medida que avanço nas artérias e à medida que me afasto de seu coração gelado de concreto e ferro. Água. Muita água. Os postes têm a luz cada vez mais pálida.

A rua é essa. A casa é aquela. Paro o carro no meio fio, a enxurrada promete arrastar o carro rua a baixo. Desço na chuva. A casa não tem portão, nem campainha, subo alguns lances de uma pequena escada, as luzes estão todas apagadas, as paredes tem a tinta gasta, há um cachorro encolhido num canto da pequena varanda, ele não se mexe, parece não se importar nenhum pouco com minha presença, bato na porta. Ninguém atende de imediato. Acendo um cigarro. Espero alguns segundos. Nenhum movimento dentro da casa. Bato mais uma vez. Nada. Outra vez. Nada. Uma terceira vez. As luzes se acendem. Ouço uma voz feminina. Mas não entendo o que diz. Ouço passos, que ficam mais pesados à medida que se aproximam da porta. Uma moça abre a porta. É a bibliotecária.

- Preciso falar com você. É urgente.

Ela não se assusta. Reconhece-me da biblioteca, estou sempre por lá, sou um leitor mediano, leio alguma coisa de vez enquanto, mas na biblioteca eu apenas folheio, fico horas a folhear. Ela deve me achar meio esquisito por isso. Todo mundo acha. Eu também acharia se não fosse comigo. Ela me convida para entrar. Diz que estou molhado. Estava na chuva e não podia ser diferente, imagino. Os olhos dela denotam um misto de curiosidade e receio. O que temerá? Será que acha que sou algum maluco? Bem , talvez. Conto a ela a história de Rita. A curiosidade aumenta e vence completamente o receio no fundo de seus olhos. Ela faz um chá. Quente. Fumegante. A chuva bate na janela. Ela presta atenção na história. Eu conto devagar, tenho medo de esquecer algum detalhe. Falo a ela sobre os sonetos. Ela gosta de sonetos. Fala-me de Rimbaud. Digo que não sei quem é. Ela cita um verso. Eu não falo francês. Acho que ela também não. Fico sem entender mesmo assim. Retorno para a história de Rita. Digo que preciso de ajuda para encontra-a, preciso de sua ajuda. Ela toma o chá fica me olhando. Volta a pensar que eu sou maluco. Lembra-se vagamente ta tal moça, mas não sabe se ela se chama Rita. Diz que o nome da tal moça e o endereço devem constar da lista de freqüentadores da biblioteca. Pede para que eu passe na segunda-feira. Digo que tem que ser essa noite ainda. Ela fica me olhando pasma. Digo que é um caso de vida ou de morte. Ela, depois de muito relutar, resolve me ajudar. Tem as chaves da biblioteca.

Ela se veste. Pega um de meus cigarros acende e dá uma tragada profunda.

- Vamos encontrar essa tal Rita.

A chuva está ainda mais forte. A madrugada vai se afunilando. Rumamos para a biblioteca. O mesmo deserto nas ruas. Os mesmos sinais fechados para os mesmos carros que não existem além do conforto de suas garagens quentinhas de subúrbio.

Falo ela, que descubro se chamar Ana, sobre os últimos acontecimentos, as alucinações com Rita, os delírios, devaneios, ela me olha meio atônita e curiosa, acho que imagina as situações à medida que eu as narro e chega às vezes até mesmo a esboçar um sorriso, que a medida que mergulhamos mais densamente no coração da metrópole, vai se tornado uma gargalhada, que extravasa mais do que eu posso imaginar a principio. Ana me conta do claustro da literatura. das tentativas frustradas de publicar, dos livros começados, das, das madrugadas acordadas, feito Balzac a compor sua obra obscura nos porões de uma Paris inóspita, fria e despreparada para a gloria de sua literatura. ela fala muitas coisas, mistura outras, uma enorme sopa de informação que se mistura com Rita e com meu desejo de ver-lhe o rosto. Caos e chuva. Diz que a Paris de Balzac era uma metrópole no coração do mundo, tal como essa cidade de ferro, concreto e fumaça, e que a literatura não achava brechas para se espalhar pela cidade e lhe curar o câncer da insensibilidade.

O guarda ainda está no mesmo lugar em sua guarita, escondido de Deus e de sua fúria.

- O senhor voltou? - Ele constata ao me ver descer do carro com a bibliotecária.

Ana abre a porta enorme enquanto o guarda fica olhando, com certeza imaginado coisas, enxergando possíveis conspirações no fato de um homem e uma mulher entrarem juntos em um prédio de madrugada. Ela consegue se mover nos escuro, enquanto eu apenas tateio as paredes a procura de apoio. Ana acende as luzes. Caminha em direção as fichas de cadastros. Procura e não acha nada que a anime. Continua a procurar.

- Aqui está Rita, D`brael. Tem o endereço. Solteira, 27 anos.

De volta para o carro. Ana resolve que quer ir comigo. Mergulhamos mais uma vez na chuva. A medida que vamos nos aproximando de nosso destino minhas mãos vão ficando suadas, minha garganta está seca, a voz quase não sai, pareço um viciado em meio a uma crise de abstinência. Dirijo o mais rápido que posso. Ana diz para irmos devagar, mas sua voz entra por um ouvido e sai pelo outro. Nada mais tem espaço em minha cabeça além do desejo incontrolável de ver Rita. Ver seu rosto, finalmente.

No endereço há uma casa enorme e antiga, terrena, tijolos a vista, canteiros ao redor, touceiras de flores, rosas, margaridas, cravos, e muitas outras espécies que desconheço o nome e o aroma, que no entanto entram por minhas narinas sedentas do perfume de Rita. Ainda chove, mas agora a violência das águas vai diminuindo gradativamente a medida que caminho até a porta da casa. Bato. Silêncio. Bato de novo. A porta se abre e deixa escapar o volume da TV ligada. Um senhor de óculos redondos e olhar cansado, pele mirrada e dona de um tom anêmico me olha com olhos que já foram belos mais agora nada mais são que dois borrões azuis por detrás da grossa lente dos óculos arcaicos que sustenta sobre o nariz.

- O que está acontecendo? - Ele parece assustado.

- Preciso falar com Rita. - Eu digo.

- O que disse, fale mais alto, estou sem meu aparelho de surdez.- O velho então aponta para a TV ligada. - Estava aqui vendo as imagens coloridas da TV, imagens muito bonitas. Imagens de um filme de guerra. Eu estive na guerra, perdi amigos, perdi primos, muitos morreram na guerra. Você não sabe, nem poderia saber, não tem idade pare ter estado na guerra. Eu já não enxergo nada. Fico aqui olhando as imagens, não preciso escutar o que dizem. Eu sei o que se passa, o que sentem, o que dizem, eu sou um deles, estive nessa maldita guerra. Ainda ouço os sons, os gritos, os tiros, os mísseis, as balas zunindo na madrugada, a fome, o frio, as dores, meu Deus que horror.

- Onde está a Rita? - Interrompo seu monólogo.

- Rita? A sim, ela está no trabalho.

- Trabalho, mas é madrugada.

- Ela trabalha de madrugada. Uma boate, um bar, não sei direito. Nautic`s Club, já ouviu falar?

- Não, mas descubro onde é.

- Não esteve na guerra, não é mesmo?

- Não.

- Devia dar graças a Deus por isso, meu filho. Aquilo foi um inferno.

Ele fica me olhando. De que guerra fala. Não imagino que tenha idade para de fato ter estado na guerra. Ele fecha a porta e imagino que volte para seu filme, volte para a guerra. Ana está fumando encostada no carro, quase não chove mais, uma garoa apenas, faz um pouco de frio.

- Ela está trabalhando. Nautic`s Club, já ouviu falar?

- Não. Não conheço esse lado da cidade.

Ela me estende o maço de Rithz, acendo um e fumo devagar, penso nos episódios da noite. Consulto o relógio, já é madrugada alta. Entramos no carro a procura do tal clube. Algumas quadras adiante uma loja de conveniência dessas 24 horas. Entro, compro duas cervejas longneck e pergunto pelo clube. O rapaz me informa. É uma espécie de boate literária. Bebe-se, fuma-se e se lê poesia.

Volto para o carro, entrego a cerveja a Ana. Ela toma em goles longos. Nunca imaginei uma bibliotecária bebendo dessa maneira. Ela se senta no banco do carona, ainda fumando, liga o rádio. A FM toca um jazz nostálgico.

- O que vai dizer a ela quando a encontrar?

- Não sei.

- Como não sabe? Tem que dizer alguma coisa. Ou vai simplesmente dizer a ela que escreveu um livro de sonetos, com um soneto para cada parte do seu corpo? Não acha que vai a assustar?

- Não sei. Preciso pensar. Preciso dizer alguma coisa a ela, não é mesmo?

- Sim, precisa dizer.

- Não sei se vou conseguir.

O saxofone vaza da FM. A melodia apática atravessa meus tímpanos. O que direi a Rita? Tenho a impressão de que não conseguirei dizer uma única palavra. Sensação de que ficarei mudo perante a contemplação de seu rosto. Seja qual for o rosto que ela tiver.

Na porta do Nautic`s Club há um letreiro de néon com as letras enormes em um desenho gótico, simples porém atraente. Um guarda na porta. Mãos atrás das costas, estático, estacionado entre uma postura de ataque e de defesa. Ana fica no carro. Pago a entrada entro. O lugar não é muito grande, fumaça por todos os cantos, a algumas mesas onde pessoas jogam, jogos de tabuleiro, batalha naval, banco imobiliário, xadrez, damas. Tomam cerveja preta, vodca, uísque, guaraná. Fuma cigarros aromáticos, incensos crepitam nos cantos e nos centros de algumas mesas. Estranho cenário para uma boate. O lugar está congestionado, as pessoas se esbarram, no entanto a ordem é impecável, os movimentos não se misturam e nem se coagulam, a limpeza do lugar é impecável, apesar dos odores múltiplos o ar é gostoso de ser respirado na mesma proporção com que temos imenso prazer ao respirar dentro de uma confeitaria.

Em um dos cantos da sala há um pequeno palco, onde um homem pequeno, de boina e bigode de pintor expressionista lê um poema em uma voz pausada. Não consigo encontrar Rita. Qual dessas moças que andam para lá e para cá será ela? Todos prestam atenção nos versos que o homenzinho lê. Até mesmo aqueles que parecem estar concentrados nos jogos prestam uma atenção a sua vozinha impertinente. O homem acaba de ler e é aplaudido. De repente tenho uma idéia para encontrar Rita. Subo no palco. Todos ficam me olhando. Acho que não tenho o aspecto dos freqüentadores da casa e ainda por cima estou meio molhado.

- Gostaria de ler alguns sonetos que fiz para uma pessoa que amo muito. E que acreditem nunca vi o rosto. Mas fui informado por um velhinho, quase surdo, que jura ainda ouvir os sons da guerra, que ela trabalha aqui.

As pessoas param o que estão fazendo e colocam seus olhos sobre mim. Leio o primeiro soneto. O segundo. Um soneto para cada pedaço do corpo de Rita. Soneto após soneto a mulher toda vai se desenhando. O silêncio é completo, todos estão atentos aos versos, tentando adivinhar qual o rosto de Rita. Tantos olhos sobre mim, não sei dizer quais são os olhos de Rita. Ate que uma moça, usando mini saia jeans, sai de entre um grupo mais a um canto, e então reconheço aquelas pernas. São as pernas de Rita. Nesse momento todos os olhos da assistência, e os meus também, já estão em Rita. Meus olhos sobem lentamente de suas pernas, tão conhecidas minhas, para sua cintura, seus seios, seu busto e finalmente seu rosto.

Desço do palco, caminho até ela e lhe entrego os sonetos. Ela não diz nada apenas estende as mãos para recebe-los. Também não digo nada. Sinto no peito uma alegria indescritível e uma necessidade enorme de compor um último soneto. Um soneto que descreva em cada verso o mais delgado dos traços de seu rosto. Caminho para fora da boate, os cheiros se misturam, a fumaça se torna uma cortina que me esconde os demais rostos e só consigo ver o de Rita, fossilizado para sempre em minhas retinas. Passo pelo guarda. Ana está mais uma vez apoiada no capô do carro, fumando.

- E então? - Ana quer saber.

- Preciso ir pra casa fazer um soneto.

Lágrimas escorrem dos meus olhos. Começa a chover e o céu então chora junto comigo.

Situação de Clichê

A cabeça dói, as têmporas latejam, a boca está amarga, devo ter bebido além da conta, mas não me lembro. O sol entra pela janela do quarto, bate no meu rosto, me força a fechar os olhos, que ardem. Bocejo demoradamente, faço forças para sair da cama. Vou ao banheiro e me olho no espelho. As lembranças vêem a tona. Eu estava ontem à noite do bar do cassino Nautic`s, bebendo cerveja preta, só me lembro disso, um flash tímido de memória. Depois vim para este hotel. Apartamento 666. Estou esperando Susane. Ela disse que viria. Que horas são? Olho no relógio, 22 horas. Que estranho a data do relógio está adiantada uma semana. Que coisa. Mudo de 24 para 17. devo ter batido o relógio e algum lugar e desregulado o mecanismo. Bem, não importa.
Do apartamento 666 eu vejo apenas a garagem, carros velhos, paredes descascadas pelo tempo. Volto-me para o espelho, faço a barba sem pressa, poucos pelos, dispersos e grossos, um bigode ralo, oriental e desleixado. Penteio o cabelo, visto a roupa, passo perfume e desço as escadas em direção ao bar. Espero por Susane. Já faz alguns meses que não a vejo. Foi meu primeiro amor, coisa do tempo da escola, ainda sinto seu perfume, o toque de seus dedos macios, a rigidez de seus mamilos o gosto de champanha de sua boceta e por ai a fora . Droga, ela está atrasada. O relógio marca quase meia noite. O celular vibra. É Susane, diz que vai se atrasar mais alguns minutos. Talvez uma hora.
Paciência.
Vou para a sala de jogos. Muitos homens vestindo smokings, fantasiados de pingüins. Boa cena para um conto, imagino. Já vejo o conto se movendo, as palavras chegando, saltando na folha em branco. Eu uso uma velha Olivetti, uma das minhas mais antigas paixões. Mais antiga até mesmo que Susane. Droga, essa mulher que não chega nunca.
Mais paciência.
- Um uísque com gelo.
Sinto-me também um personagem de um conto, tal como os homens vestidos de pingüins. Bebo devagar. Uma moça se aproxima com um livro. Meu último livro.
- Poderia autografar para mim?
Ela me pede com um sorriso de derrubar o mais sádico dos carrascos.
- É claro, minha flor.
A moça se vai. Fico com meu uísque com gelo. Onde estará Susane? Se fosse outra mulher qualquer eu não esperaria, mas é Susane.
Meia noite.
Meia noite e meia
Nada de Susane.
Resolvo jogar pôquer com os pingüins. Compro fichas. Sento-me em uma das cadeiras vazias. Os minutos passam. Tenho um Straight Flush, logo na primeira mão, quem diria.
- O pôquer é um jogo do demônio.
Um dos meus personagens disse isso em um dos meus últimos livros, agora repito para os pingüins, mas me ignoram, acho que não leram o meu livro.
- Pôquer é um jogo para pingüins. - Digo para mim mesmo.
Saio da mesa e vou procurar alguma coisa pra fazer enquanto os ponteiros do relógio apostam corrida com o trêm bala.
- Ei Adam. - Me chama o cara do bar
Meu nome é Adam, mas não igual ao alter-ego do He-Man, sim como Adam Smith, o economista. Meu pai gostava dele. O admirava profundamente devo confessar, por isso me deu o nome. Meu pai concordava com aquilo que o economista disse sobre o padeiro e o dinheiro e aquela coisa toda sobre lucro e amor. Pois é. Meu pai não era economista, era padeiro mesmo. Vou até o garçom.
- Aquela moça deixou isso pra você.
Ele me entrega um envelope.
- Que moça?
- Aquela com o livro.
- A do autógrafo?
- Essa mesma.
Abro o envelope, há apenas um bilhete. Poucas palavras.
O marido de Susane descobriu tudo. Se quiser saber toda a verdade me encontre na esquina da K com a Ruiz as 3 dessa madrugada. Traga os originais do livro que está escrevendo, você e o livro correm perigo.

R.

Quem é R? não entendo nada. Então Susane é casada? Quem diria. E que história é essa de originais, que historia é essa que eu corro perigo? Quem seria a moça do autógrafo? Alguma criminosa? Com aquele sorriso
impossível, ou não? Uma da madrugada. Falta ainda duas horas pra pensar. Tentar entender o que está havendo.
Na sala de jogos os pingüins fumam charutos. Que coisa mais démodé. Tudo é um enorme clichê. Os pingüins, o pôquer, o uísque com gelo, esse parece ser o pior de todos, a não ser talvez o número do quarto, a referência ao perfume de Susane e ao toque de seus dedos e tudo o mais em relação a sua ausente pessoa. Até o meu próprio nome cheira a clichê neste instante. E o fato de ser escritor piora significamente a situação.
Essa é realmente minha vida, ou eu a estarei lendo em algum lugar? E se for assim quem terá escrito obra tão decadente e sem estilo, uma prosa piegas, o lugar comum que sufoca os personagens em clichês gritados de todos os cantos.
O que quer dizer o bilhete? E se não quiser dizer nada? Leio novamente, tem que querer dizer alguma coisa. Ninguém escreveria um bilhete que não quisesse dizer nada, ou escreveria? Uma e meia, acho que o trem bala está perdendo a corrida.
Como escapar de uma situação de clichê como essa? Olho ao redor e não acho resposta para nada.
Saio para a rua. Silêncio. O céu está escuro. Alguns minutos e a chuva desaba. Chuva, mais um clichê clássico.
Um carro pára na calçada. O motorista abre o vidro. Cigarro aceso, me chama.
- Sr. Adam, O escritor?
- Sim.
- Encomenda para o senhor.
O motorista então me entrega uma caixa, sai cantando pneus, lá vem clichê. Abro a caixa e dentro dela há uma um objeto embrulhado em seda vermelha, seda vermelha, chegamos ao fundo do poço com os clichês. De repente me sinto preso dentro de um conto mórbido, aonde as cenas vão se alternando sem lógica alguma, meramente ao sabor dos mais variados clichês. Enrolado na seda vermelha há uma arma, uma pistola semi-automática e um bilhete.

Leve isso junto com os originais. Você vai precisar.

R.

R. de novo, quem seria? Que espécie de loucura seria essa? Aonde iriam me levar tantos clichês? Dever ser um sonho. Sim, só pode ser isso. Mas já que estou preso nesse manto de clichês cometo mais uma, acendo um Marlboro com meu isqueiro zippo americano.
Por que o original do livro? É uma história ainda no começo. Apenas a história de um escroque chamado Roberval. Jogador de pôquer, trapaceiro, vive de pequenos golpes, bebedor de uísques, conhaques, vodcas e pingas. Sim, muitas pingas. Pingas brancas, amarelas, das mais diversas cores e mais diversas misturas. Roberval não se veste de pingüim, mas também fuma charuto enquanto joga no pano verde, outro clichê. Ele usa suspensório. Parei na cena em que ele leva um tiro durante uma partida de pôquer em um cassino clandestino e barra pesada.
A placa da esquina marca K com a Ruiz. É bem aqui o lugar do encontro. Vim parar aqui sem querer, coincidência, não pretendia vir de fato a encontro nenhum, compactuar com uma loucura dessa, imerso em um banho gelado dos mais diversos clichês. Mas cá estou, então paciência. Fumo devagar, não poderia ser diferente, já que de alguma maneira inconsciente estou farejando uma trilha de clichês. Três horas. Um carro preto pára ao meu lado. O vidro se abre. A porta se abre. Sai um homem enorme, todo vestido de preto.
O homem me obriga a entrar no carro. Fico sentado entre ele e um outro homem também de preto, só que maior e mais carrancudo. No volante um homem magro e a seu lado, no banco do carona, uma loira de batom vermelho e olhos azuis.
Situação de clichê, não resta mais a menor dúvida.
- O que você sabe?
- Sobre o que?
- Sobre ele.
- Ele quem, meu Deus?
- Seu Deus não tem nada a ver com isso. O que você sabe sobre Roberval?
- Mas que é esse Roberval?
- Você está escrevendo um livro sobre ele.
- Onde estão os originais?
- Eu não trouxe.
- Vamos buscar.
O magrela ao volante faz o retorno na esquina, chega a subir na calçada, imagino que não podia ser de outra maneira. A chuva aumenta, as gotas enormes socam o teto do carro. Quando chegamos minha casa está toda revirada, as coisas jogadas no chão, os livros, os móveis, as gavetas vasculhadas, louça quebrada, e os originais do livro desaparecerem.
- Alguém esteve aqui.
- Parece obvio.
Situação de clichê. Parece um pesadelo. Faço força para acordar, mas não adianta, estou preso no sonho, se é que isso é realmente um sonho, um pesadelo, um delírio, já não sei o que pensar. Os homens enormes procuram alguma coisa no meio do caos que varreu minha sala, mas nada pode ser encontrado.
- Os originais foram roubados.
- Quem teria feito isso?
- Roberval, provavelmente.
- Mas ele é somente um personagem.- Eu digo.
- Você não sabe de nada.
Os dois gorilas me arrastam para fora da casa. O magrelo tira do porta-malas do carro dois galões com algo que presumo ser gasolina, no melhor dos clichês dos filmes de gangster, e joga sobre a bagunça da sala, derrama sobre os moveis, molha tudo o que vê pela frente até que os galões ficam completamente secos e o cheiro de gasolina invada tudo, inclusive meus pulmões.
- Onde está seu zippo americano.- A loira me pergunta.
- Não tenho.
- Claro que tem. Zippo é um clichê clássico.
O mais forte dos dois brutamontes tira o isqueiro do meu bolso e joga para a loira. Ela tira uma cigarreira dourada de dentro da bolsa. Acende um Free e traga profundamente. Acende a chama do isqueiro mais uma vez e então o atira pela janela aberta. Sou arrastado para dentro do carro enquanto o fogo avança e destrói o meu lar.
- A noite vai ser longa.- Diz a loira ainda fumando lentamente seu Free.
Free é mesmo cigarro de mulher, ou seria apenas mais um dos incontáveis clichês dessa madrugada?
- E agora como vou fumar sem o meu zippo?
Na verdade eu deveria estar mais interessado em onde e como vou morar, já que minha casa foi incendiada por um bando de malucos em um carro preto, que estão a procura de uma cara que só existe, até que me provem o contrário, dentro do meu ultimo livro, e que pra piorar o tal livro, ainda inacabado foi roubado. Esqueci algum dos clichês e acontecimentos bizarros das últimas horas?
- Pare de fumar. Cigarro faz mal pra saúde, nunca te falaram isso?
Diz o maior dos brutamontes enquanto explode um uma gargalhada que só pode ser comparada a risada de uma criança, uma menina de oito anos, loira e com os cabelos presos com lacinhos, para ser mais exato.
- Me fale sobre a história. - Pede a loira.
- Que história?
- A história que está escrevendo.
- É um faroeste moderno, sabe come é, uísque com gelo, pôquer, charuto, moças loiras, sem alusões as pessoas presentes. - Neste ponto pisco para ela, que faz uma careta que desencoraja a fazer qualquer outra piadinha. - A história é cheia de putas, cafetões, cabarés, cawboys, escroques, como é o caso de Roberval, ele é traído pelos amigos, que não são tão amigos assim pelo que se vê, parceiros de carteado, atiram nele durante uma partida de pôquer.
- O que mais?
- Por enquanto só. Parei nessa cena da traição.
- Mas como termina.
- Eu não sei. Vou escrevendo sem premeditação.
- Ao sabor dos clichês?
- Mais ou menos.
- Li seu último livro. - Diz o maior dos brutamontes.
- Espero que tenha gostado.
- Obrigado, admiro os leitores sinceros e sensíveis.
- Tem cavalos no seu faroeste moderno? - A loira quer saber.
- Não.
- Motos?
- Sim.
- Estamos chegando. - Diz o magrelo ao volante.
- Vocês destruíram minha Olivetti.
Ninguém diz nada. Só então me lembro de Susane. O que terá acontecido com ela?
- O que aconteceu com Susane?
- Está escondia em um lugar seguro.
- O que ouve?
- Roberval descobriu tudo.
- O que tem a ver Susane com o personagem do meu livro?
- Eles são casados. Susane e Roberval.
- Isso é loucura.
Nada disso pode estar acontecendo. Deve ser um pesadelo. Inexplicável situação de clichê.
- Quem são vocês, afinal? - Eu quero saber.
- Estamos à procura de Roberval.
- E o que eu tenho com isso?
- Você é o contato.
Insuportável situação de clichê. Isso só pode ser um sonho, ou um filme velho emperrado dentro da minha memória, uma daqueles clássicos de suspense ainda em preto e branco, não sei. Talvez um filme de Antonioni, mas se fosse não haveria esses clichês. Um clássico qualquer de Kubrick, cheio de situações inusitadas, talvez, mas onde está o estilo marcante do grande cineasta? Não, Kubrick não é. Uma história de Kafka, quem sabe? Não, também não. Tendo por a cabeça em ordem. Como foi que tudo isso começou? Com o telefonema de Susane. Depois o uísque com gelo, não devia ter tomado aquele primeiro clichê. Mas tomei, paciência.
- Para onde estão me levando.
- Logo vai saber.
Então me lembro da arma. Não me revistaram, a arma ainda está na minha cintura. Sinto, de repente, todo o frio de seu aço contra a minha pele. O bilhete dizia que eu ia precisar. Mas quem teria escrito aquele bilhete. Quem seria R.?
De repente o carro pára.
- Chegamos. - Diz a loira.
Vejo uma casa enorme. Não, não é uma casa, é uma igreja. Uma escadaria enorme. Sou arrastado degraus acima. O maior dos godizilas entra chutando a porta da igreja. Um padre fuma charuto sentado no púlpito, pernas cruzadas, cavanhaque, óculos e mais um ou dois clichês de rotina na vida dos padres, que, aparentemente, são vilões de histórias bizarras, como essa parece ser até agora.
- Atrasados. - Diz o padre.
- Os originais foram roubados.
- Merda! - Diz o padre.
- Este é o padre Salvador. - Diz a loira.
- Salvador?
- Sim, posso salva-lo do fogo do inferno, meu filho. - O padre ri.
Fico sem saber o que dizer. Mas o que poderia dizer diante de tamanho clichê?
- Fuma charuto?
- Os vilões fumam charuto, isso é um clássico.
- Meu filho, isso não é um conto de Rubem Fonseca, é a vida real. E na vida real só a um vilão; o tempo. Já deve ter ouvido falar.
- Sim, já ouvi, isso faz de você um plagiador.
- Literatura. Somente literatura nada mais que isso.
O padre gargalha como um bom vilão de filme B. Engasga com a fumaça.
- Querem beber alguma coisa?
- Não temos tempo. - Diz a loira.
- O que vão fazer agora?
- Falar com o Sr. X.
Neste instante essa situação de clichê atinge um estado crítico, se tudo fosse uma bomba explodiria neste exato momento. Senhor X? Esse é o cúmulo do piegas. Já não é mais clichê, beira ao ridículo. Só pode ser um pesadelo, não há outra explicação.
A loira então beija o padre na boca. Tudo pra mim vai perdendo o sentido, perdendo as cores, os sons. Sinto que vou perder os sentidos. Tudo fica escuro e imóvel. Desmaio.

* * *

- Acorde Adam.
Alguém bate no meu rosto. É Susane. Acordo e me encontro completamente nu em meio à nave da igreja. O padre Salvador está caído a alguns metros.
- O que houve Susane?
- Não sei direito.
Minhas roupas desapareceram. Caminho até o padre Salvador. Ele está morto em meio a uma poça de sangue. A arma que eu trazia está jogada a alguns metros do corpo. Há uma batina sobre o púlpito. Visto-a. Está frio. Ouço a chuva batendo no teto da igreja. Apanho a arma. Susane está fumando Free, igual a loira.
Situação de clichê. Ou será apenas coincidência?
- Por onde você andou?
- Fui pega e me obrigaram a ligar para você.
- Que diabos está acontecendo?
- Não sei.
Ela caminha em direção a porta.
- Aonde vai?
- Quero descobrir o que está acontecendo.
- E como vai fazer isso?
- Sei para onde foram.
- E como sabe?
- Ouvi uma conversa.
- Vou com você. Preciso encontrar os meus originais.
Susane entra no carro. Monza preto. Mais um carro preto. Sento-me no banco do carona.
- Me dá um cigarro. - Peço.
- Free?
- Não é cigarro de mulher?
- Isso é um clichê ordinário, só isso.
- Sei.
- Como veio parar aqui?- Ela pergunta.
- Fui agarrado na esquina da K com a Ruiz.
- O que aconteceu na igreja?
- Não sei direito. Desmaiei quando a loira beijou o padre.
- Que nojo.
Trago o cigarro e também me engasgo com a fumaça.
- Não viu quem o matou?
- E aquela arma?
- Era minha.
- Sua? Nunca soube que você tinha uma arma.
- Não tinha. Entregaram-me em uma das esquinas entre o hotel e a K com a Ruiz.
- Quem entregou?
- Um cara num carro preto.
- Muito estranho.
- É, pois é, é uma situação de clichê.
- Como assim?
- Não percebe Susane, nada disso pode ser real. Você é casada?
- Sim.
- Como se chama seu marido?
- Roberval, por quê?
Minha cabeça começa a girar, não é possível, nada disso pode estar acontecendo, sinto que vou desmaiar de novo. Vontade de vomitar.
- Pára o carro, Susane.
- Ela freia. Abro a porta a tempo de vomitar na calçada. A cabeça gira, sinto que vou mesmo desmaiar.
- Calma Adam, respira devagar.
Não, não pode ser real, é só isso que consigo balbuciar antes de sentir a visão se embaçando e o escuro profundo de aproximando cada vez mais.
- Não desmaie, Adam.
Silêncio, profundo e gutural.
Acordo com o carro já em movimento. Estou deitado no banco de trás. Há uma moça de cabelos vermelhos, sentada no banco do carona, ao lado deSusane, masca chicletes ruidosamente.
- Acordou Cinderela?
- Não era a Cinderela que dormia, era a Bela Adormecida.
- Bah, tudo igual.
- Essa é minha amiga Natacha.
- Você é puta? - Pergunto para Natacha.
- Sim, como sabe?
- Deduzi, clichê clássico.
Ela não diz nada. Susane não diz nada. Então só me resta dizer alguma coisa.
- Quem é o Sr. X? - Pergunto.
- Ninguém sabe. - Diz Natacha.
- Como assim? Alguém tem que saber.
- É um mito, uma lenta, é como um fantasma. Controla o jogo daqui até Manaus, a prostituição, tem cassinos clandestinos, corrida de cavalo, de cachorro, rinha de galos, é uma espécie de Capo italiano.
- Meu Deus. - diz Susane.
A mim nada mais surpreende, um clichê a mais um a menos, se ela me dissesse que era Victor Corleone em pessoa, que motivos eu teria para duvidar? Estou, à uma hora dessas, preparado para tudo.
- Como se encontra ele?
- Você não o encontra, ele te encontra.
Eu devia saber. Que inocente eu sou pra fazer esse tipo de pergunta para uma puta de cabelos vermelhos em uma noite absurda, cheia de cenários pitorescos, cheia de diálogos roubados de um gibi do Dick Traice, inundado de clichês tão ordinários quanto solados de um chinelo velho ou de uma novela mexicana cheia de personagens com nomes compostos. Avançamos cada vez mais, ou melhor mergulhamos cada vez mais nesse abismo surreal e mórbido, nos inveredamos ainda mais nessa situação de clichê, que a muito já saiu de qualquer controle.
O que terá os originais do meu livro a ver com tudo isso? Quem é Roberval, afinal? O que todos estes homens de roupas pretas, carros pretos, querem comigo e com meu livro? Quem é R.?
- Pra onde estamos indo?
- Calma, já estamos chegando.
Olho no relógio, quase quatro da madrugada e ainda está chovendo muito, as gotas estão enormes, surram o pára-brisa do monza. Sinto os olhos arderem, estou com sono, não deveria ter saído daquele quarto de hotel.
Susane pára o carro, ruas escuras, mulheres seminuas nas esquinas, por todos os cantos, travestis, o cheiro do mar se alastra carro a dentro, invade minhas narinas, a maresia invade meu cérebro e embrulha meu estomago. Desço do carro e vejo um bar aberto, caminho na chuva, preciso comprar cigarro, fumar Free é como não fumar nada, embora fumar nada resolveria alguns problemas de saudade como por exemplo um câncer de pulmão eminente. Compro cigarro, tomo uma dose de vodca. O bar está deserto, apenas eu e o cara que me atende, a TV está ligada, chuviscada, chiando feito uma panela de pressão ou como um lutador de boxe no final do ultimo assalto, não consigo diferenciar, mas consigo entender o que o âncora do telejornal diz.

Âncora-

O crime se deu nessa madrugada, por volta das três da madrugada, testemunhas que estavam de passagem pelo local afirmam ter visto um homem vestido de padre, saindo da igreja, acompanhado de uma mulher alta. Ao vivo direito da cena do crime está o nosso Roberto Ernesto Garcia.

A imagem corta para a fachada da igreja para onde eu fui arrastado pelos dois gorilas, pelo magrelo e pela loira, alguns curiosos estão na frente da igreja, uma pequena aglomeração e alguns carros da policia. O repórter enche a tela, bombástico, como todo repórter em cena de crime.

Repórter-

Estamos ao vivo direto da igreja de Cosme, no Largo do Bloco, onde o padre da paróquia, Salvador Resende e Souza, foi assassinado brutalmente e a queima roupa, com um tiro na nuca. Segundo a polícia trata-se de uma execução ou queima de arquivo. Testemunhas que passavam na área na hora do acontecido, entre 3 e 3 e meia, dizem ter visto um homem vestido de padre, saindo com uma pistola nas mãos, acompanhado de uma mulher alta, os dois deixaram a cena do crime em um monza preto com placa de Santos.

A câmera mostra o padre sendo retirado pela policia em um daqueles sacos pretos e colocado dentro do carro da funerária.

Repórter-

Há uma suspeita da policia de que o criminoso em questão se trate do escritor Adam Smith, que parece ter sido reconhecido por uma das testemunhas. Mas o que levaria esse conhecido escritor de nossa literatura a cometer tal crime e quem seria a moça que o acompanhava. Vamos falar com uma das testemunhas. Senhor Astolfo Ribas o que realmente o senhor viu?

Astolfo Ribas-

Vi o homem saindo da igreja junto com uma mulher muito gostosa, alta, peituda, desconfio que aquilo seja silicone. Mas o homem eu reconheci, mesmo vestido de padre, era o tal escritor Adam Smith, li um livro dele uma vez e dei uma olhada na foto da contracapa pra nunca mais ler nenhuma das porcarias que ele escreve.
No momento que dou as costas e saio para a chuva a TV está mostrando uma foto minha. Essa situação de clichê está ficando cada vez pior, agora além de tudo sou suspeito de ter assassinado um padre. Era só o que me faltava acontecer.
As luzes amarelas e pálidas dos postes denunciam o lugar, estamos no porto. Vejo as dezenas de centenas de conteners espalhados para todos os cantos, de todas as cores, azuis, vermelhos, verdes, amarelos, brancos. Susane está fumando encostada no carro. Natacha está falando com um travesti debaixo de um poste na esquina.
- Estou na TV.
- Como assim?
- Alguém nos viu saindo da igreja. Viram-me com uma arma. E teve um babaca que me reconheceu.
Natacha se aproxima com o travesti, seus cabelos vermelhos escorrem água, a chuva está muito forte, não sei como o cigarro de Susane não se apagou, mistérios do clichê, fumar na chuva é um dos mais mágicos.
- Essa é Claudia. Ela conhece tudo por aqui. - Diz a ruiva.
Claudia, eu devia saber.
- Quem é o padre?
Ainda estou de batina, somente agora me dou conta, a situação é mais ridícula do que eu imaginava. Um clichê a mais ou um a menos já não faz diferença alguma a uma altura dessas da madrugada.
- Ele não é padre. É uma longa história.- Esclarece Susane.
Claudia está de salto alto, saia de borracha, meias calças, uma coisa, cabelos presos em um rabo de cavalo no alto da cabeça, parece aquele ser do filme Quinto Elemento que gritava Meu homem! Com uma voz de taquara rachada.
- Já sei onde fica o armazém. - Natacha diz para Susane.
A partir daí começamos a nos esgueirar por toda extensão das docas, um verdadeiro labirinto de construções faraônicas e tão antigas quanto a própria pirâmide de Queóps, restos de barcos, por um momento me sinto preso dentro da Guernica, aquele quadro de Picasso que é uma bagunça dos infernos, dizem que ele quis representar a batalha de Guernica, importante episódio da guerra civil espanhola, mas no muito representou um acidente de carro na Marginal. Na neblina se vêem tratores, guindastes, alguns bêbados, algumas putas, que cumprimentam, de quando em quando nosso guia, o cheiro do mar vai ficando cada vez mais forte, embrulha cada vez mais o meu estômago.
Claudia de move como um esquilo, é um exercício digno de atleta olímpico segui-la nessa neblina, se embrenha pra e pra cá, parece se tratar de um verdadeiro labirinto úmido e escuro e como a madrugada é de clichê não me espantaria muito dar de cara com o Minotauro.
Chegamos, até que enfim, ao tal armazém. Uma construção enorme, com janelas pequenas e bem altas, de onde vaza raios de uma luz pálida, o prédio é todo feito de tijolos a vista, liquens cobrem a maioria das paredes.- É aqui. - Diz o travesti.
- O cara na TV disse que seus seios são silicone.
- Mentira, tudo original de fabrica.
- Silêncio. -Sussurra Natacha.
O que estamos fazendo aqui? Que loucura é essa, afina? Onde Susane está com a cabeça, para nos meter em uma situação dessa, sem pé e nem cabeça? Claudia faz sinal para que a sigamos, ela se esgueira ao redor do prédio, até chegar a uma porta mais ao fundo. O cheiro do mar envolve tudo ainda mais e começa a enferrujar meus movimentos e entorpecer ainda mais os meus sentidos. A porta está destrancada, como alias não poderia ser diferente, já que a situação é de clichê. Destrancada como toda boa porta dos fundos de um armazém infectado de vilões de um filme velho da Sessão da Tarde. Quem serão os vilões dessa trama, a espreita dentro desse armazém? O vilão é o grande ícone da literatura pop, desde os romances de épocas remotas à telenovela brasileira exportada para o mundo inteiro, todo mundo quer ver seu fim trágico, querem que o vilão termine preso, morto, louco, que ele pegue fogo e todo o destacamento do Corpo de Bombeiros esteja de férias no Caribe, sei que é um clichê, mas também desejo isso.
Entramos em silêncio, fila indiana, Claudia na frente, atrás dela Susane e logo depois eu. Tudo escuro, centenas de caixas empilhadas, pilhas que vão quase até o teto, mais um labirinto escuro e úmido. Estamos ensopados, minha batina pinga água, deixa um rastro atrás de mim, quase uma enxurrada. Ouvimos vozes vindas além de uma porta fechada. Claudia experimenta a maçaneta e a porta está destrancada. Presto atenção nas vozes. A TV está ligada, espio, um filme em preto e branco, quase azulado invade a tela, jogando uma luz opaca por todo o cenário, onde dois homens estão sentados em cadeiras espreguiçadeiras.
De repente, lá fora, um ruído metálico, um cantar de pneus e logo em seguida o som de portas de carro sendo fechadas com extrema violência. Os dois homens se levantam de um único salto, sacam suas armas e ficam alertas de frente para uma porta em uma das extremidades do cômodo.
A porta se abre e a loira entra, a mesma que fumava Free, o cabelo está molhado, o vestido negro está colado ao corpo, desenhando uma silhueta perfeita, como se fosse um manequim de vitrina de butique de roupas da Prada , logo atrás dela o magrelo entra também segurando uma arma, entram também os dois gorilas arrastando um homem da mesma forma deselegante e truculenta como faziam comigo a mais ou menos uma hora atrás. Os dois homens que assistiam TV abaixam as armas e voltam para suas cadeiras.
- O assassinato do padre já saiu na TV. - Diz um deles, já reconfortado em sua espreguiçadeira.
- Culparam o escritor.- Emenda o outro.
- Ótimo, melhor que a encomenda. - Diz a loira.
- Amarre-o na cadeira. - Diz o magrelo para os dois King Kong`s.
Eles amarram o homem na cadeira.
- É Roberval! Eles o pegaram. - Cochicha Susane no meu ouvido.
- Vamos ficar escondidos aqui? - Pergunta o travesti.
- Vamos esperar. - Diz Susane.
- Merda de chuva. - Diz a loira vestindo seu Prada molhado.
- Por quê mataram Salvador? - Pergunta um dos homens sentado em sua espreguiçadeira.
- Ele estava muito mal vestido. Um crime de moda. Não merecia viver. Onde já se viu, batina e óculos escuros. Um horror. - Diz a loira.
Todos gargalham menos Roberval, que está amordaçado e amarado na cadeira, parece meio grogue. Ouço passos, um estalido seco e uma insuportável dor na nuca. Tudo escurece.

* * *
Acordo. Ainda estou meio tonto. O estomago roda, as têmporas latejam. Um tapa estala com força no meu rosto, isso faz com que eu acabe de despertar. A dor aviva minhas sensações, aguda, visceral e corrosiva. Estou amarrado a uma cadeira, ao meu lado está Roberval e mais para a esquerda o travesti além dele está Susane, ainda desmaiada, amarrada em uma outra cadeira. Os dos homens agora estão de pé, já que suas espreguiçadeiras foram usadas para amarrar Susane e o travesti mais confortavelmente.
Começo a entender o que houve, fomos surpreendidos em nosso esconderijo, o que é um clássico clichê. Mais alguns homens estão ao nosso redor, além de todos aqueles que já se encontravam no armazém. Além dos dois godizilas, os dois que estavam nas espreguiçadeiras, além da loira e do magrelo. Pelo menos mais seis homens a mais.
Ainda chove lá fora.
-Acordou Fernando Pessoa? - Diz a loira, tentando ser sarcástica.
Ela não consegue, quando no muito consegue ser desagradável, mas isso não beira aquele sarcasmo piegas que os vilões dos filmes B despejam sob os mocinhos, quando estes estão amarrados em cadeiras espreguiçadeiras e cercados por gangster por todos os cantos em um velho armazém abandonado nas docas. De modo que a loira deve estudar um pouco mais de arte dramática. Ela poderia ter citado qualquer um, então por que logo Fernando Pessoa? Por quê não Loyola ou Sabino?Além de péssima atriz a loira parece não ser dada a grandes leituras.
Batem na porta.
- Quem é?
Ouve-se uma tosse cavernosa, seguida de pelos menos uma dúzia de espirros violentos.
- Essa tosse e esses espirros. Só pode ser ele. - Diz o magrelo.
Um dos gorilas abre a porta. Um homem muitíssimo parecido com um ursinho game entra, acompanho de mais trogloditas. Os trogloditas reunidos nesse armazém, figurantes dessa cena clássica de cinema ruim, juntos já formariam um time de futebol americano. Todos eles vestidos de preto. Se montássemos um time o problema dos uniformes já estaria resolvido. Todos fazem silêncio enquanto o ursinho game entra. Pela cara dele me parece se tratar do Bronquinha.
- Aqui está o homem , chefe.
- Ola Roberval, quanto tempo.- Diz o ursinho game made in China.- Você me fez sair de casa na véspera do natal. Isso é muito grave.
Do que esse homem está falando? Ainda falta uma semana para o natal. Ele deve ter batido a cabeça e desregulado algum mecanismo igual aconteceu com meu relógio. Ou será que o relógio não estava desregulado e hoje é véspera de nata? Não, não é possível. Seria loucura até mesmo para uma situação de clichê, como é o caso em questão. Sendo assim para onde foi a semana que falta entre dia 17 e dia 24? Mas já é mais de meia noite e se fosse o caso já seria natal. Quando bobagem. Com certeza o ursinho game deve estar bêbado.
- Daqui a pouco é natal e eu estou aqui.
Situação de clichê cada vez pior. Pior que um conto ruim. Apenas um quadro perdido entre a falta de sutileza do cubismo e anemia do andaluz. Um apanhado de acontecimentos inusitados e confusos. Um filme de ruim de Kubrick, embora não me conste em lugar algum tal coisa.
- Onde está o original do livro?
- Foi roubado.
- O código está desaparecido.
- Está inda dentro da cabeça de Roberval.
- Não está mais. - Diz Roberval.- Quando passei para a cabeça do escritor tive o cuidado de apagar da minha mente.
O que está acontecendo? Que história é essa? Do que estarão falando todos esses malucos?
- Quem roubou o livro?
- Não sabemos.
- Está na cara que foi Roberval.
- Não roubei nada. Não me serviria de nada, pois o livro ainda não está pronto.- Diz Roberval.
- Você está mentindo. - Esbraveja a loira.
Os homens de preto começam a esmurra-lo por todos os lados. Ele continua a negar que esteja com os originais do livro. Não entendo nada do que está acontecendo. Susane ainda está desmaiada. Roberval cospe uma enorme poça de sangue no chão. Sinto que vou desmaiar mais vez, os estomago começa a ficar embrulhado, não suporto ver sangue, e aqui já tem sangue suficiente para fazer um filme de guerra. Todo mundo está louco, que história é essa de colocar coisas na minha memória, apagar coisas da mente de Roberval, que história é essa de originais do meu livro, por que o querem, que história é essa de véspera de natal, afinal hoje é dia 17? Eu faço todas essas perguntas de uma única vez, ao final do ponto de interrogação me sinto completamente sem ar.
A loira ri dentro de seu xerox em preto e branco de um Prada.
- Não se lembra, não é mesmo? - Ela diz entre guinchos de sua risada esnobe e tão falsificada como seu sarcasmo.
Os godizilas param de bater em Roberval, ele ainda sangra, agora, faz companhia para Susane do distante país dos inconscientes.
- Não sei do que vocês estão falando. O que tem meu livro a ver com tudo isso? Não entendo o que está havendo. Não sei o que estou fazendo aqui, o que tenho haver com tudo isso e com vocês.- Seu livro tem os códigos. - Ela diz.
- Códigos do que?
- Senhas de contas em bancos suíços.
Pronto. Eu devia estar à espera disso, de modo que não me surpreendo de todo, filme de gangster, assassinato de padre, roubo de livro, códigos, contas na suíça, travesti usando saia de borracha, mulher peituda fumando Free, chuva, carro preto, loira, magrelo, homens de preto, Sr. X, uísque com gelo, pôquer, pistola semi-automática, prostituta ruiva, armazém nas docas, será que esqueci alguma coisa. Receita perfeita para fazer um filme ruim.
- Que loucura é essa?
- Conte a ele Madalena. - Diz o magrelo
Madalena? Por que será que eu não me surpreendo com essa também?
Ela fica me olhando, parece tentar ler meus pensamentos, se pudesse fazer isso garanto que não continuaria com esse sorriso de vilã de novela do canal 13.
- Vou contar como você entrou nessa história.
A história contada pela mulher loira, Madalena, péssima atriz de sorriso debochado, vestindo sua imitação surrealista de Prada, será por mim narrada em primeira pessoa. Minha pessoa, já que a pessoa dela me parece um tanto canastrona demais para executar um monólogo, como o que vem a seguir. Não que eu queira evidenciar aqui um dos mais celebres clichês, o de que as loiras são intelectualmente afetadas longe de mim cooperar com tal conspiração. Mas vamos direto aos fatos.
Olhei para a TV, a imagem límpida do canal 13 mostrava mais uma dessas tragédias que a mídia converte em comercial para as multinacionais da alimentação. Os repórteres, sempre sujeitos com roupas engomadas e cabelos impecáveis, falando direto do local da tragédia, ou do assalto, ou do terremoto, ou fosse do que fosse, estão sempre lá, perfumados e bem passados. Tirei os olhos do monitor e olhei ao redor, senhoras vestindo longos pretos, sapatos de salto alto, sorrisos de botox, um desfile sem lógica, uma vida sem lógica.
Estou esperando Susane e por um momento me sinto aliviado por saber que ela aparecerá vestindo calças jeans, tênis e camiseta esporte, uma espécie de alienígena aos olhos das outras mulheres. Susane é alta, da minha altura. Lábios vermelhos e grossos, como se houvesse acabado de levar um murro, cabelos claros e longos, seios enormes e firmes. Ela já está atrasada.
Ponho-me a folhear o jornal do dia. Caderno 2. Crítica literária. Algumas menções ao meu último livro, recém lançado. A primeira e de um tal de Alicio Carlos, nunca ouvi falar.
O livro mais parece uma daquelas bulas de remédio amargo. Não se sabe o que quer dizer, não se entende onde quer chegar. Não serve para nada, a não ser, talvez, para encosto de uma mesa ou geladeira com as pernas tortas.
Ele ia adiante com muitas outras palavras que eu não quis saber. Havia mais abaixo uma outra crítica assinada por uma mulher. Fátima de Queiroz. As mulheres geralmente são mais sensíveis a literatura.
Adam Smith está cada vez melhor no quesito literatura ruim. Tão ruim quando seu contemporâneo mais celebre. Pelo menos Smith ainda não se denominou Mago, ponto a seu favor e a favor de sua literatura de gosto duvidoso.
Quem disse que as mulheres eram mais sensíveis? Bobagem. O jornal é tão inútil quanto o noticiário do canal 13. bebo cerveja preta. Espero Susane que já está atrasada quase meia hora. Só então reparo no homem ao meu lado no balcão. Está olhando para mim de forma insistente. Aproxima-se.
- Por acaso você não é Adam Smith, o escritor?
- Sim, sou eu mesmo.
- Está ocupado?
- Espero uma pessoa.
- Poderíamos tratar de um assunto que seria de seu interesse. Tomará apenas alguns minutos.
- Do que se trata?
- Poderia me acompanhar até uma mesa.
Vou com ele para uma mesa onde já há um homem sentado, está todo vestido de preto.
- Sou Roberval.
Diz o sujeito que acompanho. Ele apresenta o outro.
- Esse é meu sócio Raphael. Temos uma proposta para você.
- Já leu as críticas literárias, imagino?
- Já. Quem sabe faz, quem não sabe critica. O que querem comigo?
- Um livro.
-Não entendi.
- Temos uma história que daria um romance que te transformaria em um best seler.
- Por que não escreve o livro você mesmo?
Raphael está olhando fixamente para mim. Balança o copo de uísque lentamente. A pedra de gelo vai batendo nas bordas do copo. Um estalido mecânico do choque vai entrando por meus ouvidos. Não consigo me concentrar na voz de Roberval, que está falando sobre gangster`s, máfia, prostituição, lavagem de dinheiro, corrida de cavalos, contrabando, falsificação.a única coisa que consigo prestar atenção e no cubo de gelo se movendo dentro do copo. Os olhos ficam pesados.
Ouço Raphael estalando os dedos. Roberval está calado, mas já não mais me lembro do que falava.
- Temos que ir. Obrigado pela atenção senhor Smith.
Eles se vão. Fico sem entender nada, ainda ouço lá no fundo da memória o tic tac do gelo batendo no copo. Volto para o balcão. O canal 13 exibe mais uma tragédia. Tomo o resto de minha cerveja preta. O barman desliga a TV, liga o rádio, All the Way de Frank Sinatra invade o bar, a voz cristalina me faz esquecer o ruído do gelo.
Susane está atrasada. Olho no relógio. Meia noite. O tempo passou rápido demais. Definitivamente é tarde demais para Susane vir ao meu encontro. Acabo a cerveja e saio. No meu quarto, deitado na cama de casal eu ouvia o tic tac do relógio sobre o criado mudo, tinha alguma coisa querendo sair da minha memória e não sabia como. O tic tac, se parecia com alguma coisa, mas eu não me lembrava com o que. Lembrava-me apenas de um homem chamado Roberval. Bom nome para um personagem.
Foi ai que tive a idéia para um romance. A historia de Roberval, um escroque, que vivia de pequenos golpes com cartas e dados em cassinos clandestinos e barra pesada.

* * *

A história da loira é confusa, mas ela explica tudo direitinho. Eu fui hipnotizado por Raphael, enquanto Roberval me fornecia informações para que eu escrevesse um romance. Mas ainda há algumas coisas que não fazem sentido nessa bizarra situação de clichê. Por que queriam que eu escrevesse um livro?
- Isso que não entendíamos no começo. Mas depois tudo começou a fazer sentido. Que ligação haveria entra o livro e Roberval?
Pergunta a loira para si mesma, em um clássico momento de sua atuação provinciana, soltando a fumaça do Free para o alto. A chuva está cada vez mais forte. Susane já está acordada, embora ainda atordoada. Seus olhos vagueiam pelo cenário. Os trogloditas estão todos parados como peças de xadrez que esperam um movimento, uma participação na abertura ou no gambito. Roberval ainda está desmaiado, Claudia tem os olhos atentos a tudo o que se passa. Somente então percebo que a prostituta de saia de borracha não está em canto algum.
- Roberval roubou códigos de acesso a contas no exterior. O objetivo del era que você inserisse tais códigos em capítulos do livro. De modo que depois era mais seguro. Depois que passou as informações para você Raphael, por meio de hipnose fez com que o próprio Roberval esquece de tudo. Acreditava ele,que assim se manteria seguro.
- E o que foi que deu errado? - Pergunto para a loira.
- A mulher dele descobriu tudo.
- E quem é ela.
- Susane.
Estava demorando muito para que tudo ficasse de cabeça para baixo mais uma vez.
- Na verdade foi Susane quem teve toda a idéia. Foi ela quem o atraiu para o Cassino Nautic`s, para um encontro em que não compareceu.
De repente as coisas começam a fazer sentido para mim. A sucessão de encontros e desencontros. E todo o resto de fatos insólitos. Com exceção de alguns mais absurdos. Mas isso é uma questão de clichê, por isso é preciso dar um desconto. É como uma daquelas comedias de besteirol americano, onde um diretor já de saco cheio do mundo, da vida e, provavelmente, com a cara cheia de algum uísque falsificado resolve satirizar dúzias de filmes que nem ao menos assistiu, e o resultado é isso. É essa noite. É essa minha história com a máfia do jogo, ou da prostituição, já nem sei direito o que é o tal de Sr, X, além é claro de um celebre personagem de desenho animado antigo, ursinho game.
Eu era o cara errado no cenário errado, com a maquilagem errada, com o script errado, falando as falas erradas. Triste sina para um escritor, já medíocre, segundo a critica literária mais recente. Bem, eu estava lá, havia um maluco saído de um filme do James Bond, com uma maldita senha secreta de uma conta nas ilhas Caimãs ou na Suíça, à uma hora dessas, esse é apenas um detalhe geográfico sem muita importância. E quis o destino, ou o tremendo azar que devo ter, não é possível, que eu estivesse tendo um caso com a mulher do tal sujeito e essa por sua vez, com uma mente cheia de historias da Agatha Christie concebesse uma trama miraculosa envolvendo hipnose e o escambal. Eu estava surpreso.
A loira parecia se deliciar com minha reação, lambia os beiços entre uma tragada e outra. Eu estava tentando digerir toda a história. Afinal onde haveria ido parar o livro? Por quê a morte do padre? Por que logo nesse armazém úmido e fedorento? Uma pergunta de cada vez. A loira coloca um chiclete na boca e masca da mesma maneira que a prostituta fazia. Onde estará a prostituta? Quem é R.? quem era a moça do autografo? Outra pergunta. Céus, quantas.
Penso sobre o que a crítica acharia desse livro que mal acabei de escrever e já foi roubado. Onde estaria os originais da história de Roberval? Incrível essa história de escrever sob efeito de um transe hipnótico, sempre fui um cético a respeito dessas coisas. No entanto, lá estava eu acordando de uma noite mal dormida, cheio de idéias, uma história de gangster e máfia que depois de tudo foi ao poucos de tornando real, ou ao menos parecido, embora com mais clichês do que eu houvera escrito, pelo menos imagino eu, embora nesse momento tenha a certeza de que a crítica literária daqui até a Patagônia discorda disso.
Durante alguns segundos um silêncio tão profundo que chegava a ser incômodo, ninguém dizia nada, a risada da loira parecia ter morrido dentro de sua garganta, somente as respirações, e o ursinho game bufando feito uma panela de pressão cozendo alguma daquelas iguarias da cozinha afro-brasileira. Quando os sons vieram, foram todos de uma única vez, passos, tiros e sirenes da policia. Correria para todos os cantos, tiros, senti uma dor incrível na perna e depois no ombro. Senti que tudo iria escurecer mais uma vez, eu estava sangrando. As vozes ficavam cada vez mais distantes a sirena cada vez mais fraca, quase que somente um zumbido.

* * *
Acordei com Susane acariciando meus cabelos, tive a impressão de ouvir o som das pedrinhas de gelo batendo nas bordas do copo, mas eram apenas os sons dos aparelhos hospitalares. Eu havia levado dois tiros, um no ombro e outro na perna direita. Desmaiara quando a policia chegava e invadia o armazém. Eu ainda não entendia muita coisa. O que Susane vazia ali, se fora ela quem arquitetara todo o plano? Eu ainda estava com muito sono. Sedativos, com certeza. Susane então me contou todo o resto da história dada depois de meu desfalecimento.
Quando a policia chegou nas docas, levada por Natacha, que de alguma maneira havia conseguido fugir antes de sermos capturados pelos asseclas do Sr. X, o tiroteio começara eu baleado em dois pontos do corpo havia desmaiado em meio ao caos. Sr. X conseguiu fugir, mas a loira e o magrela foram presos, junto com Roberval.
Roberval contou toda a história dos códigos secretos, que eram senhas de contas no exterior, que eu havia colocado nas iniciais dos capítulos do livro, sobre a as aventuras do escroque Roberval. Mas muitas das coisas acontecidas na madrugada não tinham explicações, os clichês que impregnaram o cenário já piegas dos acontecimentos, acredito que tenha sido mais acaso do que obra de um roteirista de Hollywood. A morte do padre foi esclarecida e as suspeitas sobre minha pessoa afastadas, mas é claro que terei que comparecer a delegacia para prestar declarações.
O médico entra no quarto, sorriso do tamanho de um tênis de jogador da NBA, estetoscópio pendurado sobre o jaleco branco. Diz que estou pronto para sair do hospital, numa cadeira de rodas é claro, por causa da perna de onde foi retirada um projétil calibre 45.
Susane vai empurrando a cadeira. Na recepção há um embrulho somos parados por uma enfermeira uniformizada.
- Deixaram esse embrulho para o senhor. - Ela diz.
- Obrigado. - Digo pegando o embrulho que ela me estende.
Susane me empurra para a rua. Antes de entrarmos no carro resolvo abrir o embrulho.
Um pacote branco com apenas algumas palavras escritas em tinta dourada e letra redonda.

Aos cuidados de Adam Smith.

R.

Dentro do envelope os originais do romance e uma carta. Pus-me a lê-la.
Caro Sr. Adam Smith, depois de muito refletir sobre o ocorrido na semana passada no bar do Cassino Nautc`s, em cena que fomos protagonistas maiores, cheguei a conclusão de que o hipnose não pode ser usado de forma ilícita. Por isso me interpus no desfechos dos acontecimentos dessa última noite. Primeiro quis evitar que os originais caíssem nas mãos do Sr. X ou de Roberval, para isso pedi para que a moça do autografo deixasse um bilhete para o senhor, mas tive imprevistos, que agora não vem ao caso, e não pude comparecer ao encontro na K com a Ruiz. Vi-me então obrigado a invadir sua residência e roubar o livro para que não caísse em mãos erradas. Peço desculpas pelos transtornos causados.
Atenciosamente Raphael.
Susane empurra a cadeira de rodas através do corredor, atravessamos uma enorme porta dupla toda em vidro e um saguão enorme se abre a minha frente, cheio de acentos de acrílico e pessoas com expressões cansadas. Sinto uma enorme vontade de fuma. Susane me estende um Free, mas dessa vez sei que não é apenas um clichê de algum roteirista de Hollywood, simplesmente é o cigarro que ela fuma e pronto. Sinto uma enorme falta de meu zippo americano. Para onde irei já que minha casa foi totalmente destruída em meio aos acontecimentos dessa última madrugada?
Susane abre o enorme guarda chuva, algumas gotas ainda caem no papel e varias outras se chocam contra o meu rosto. Parece que essa chuva ainda vai demorar a parar.



Junqueirópolis, janeiro de 2008